15 de abril de 2011

Vamos ler juntos? Começa hoje: A cor púrpura de Alice Walker

Vou tentar postar todos os dias algumas páginas de um livro, até lermos juntos um livro inteiro!
Não perca!





A COR PÚRPURA

Não contes a ninguém se não à Deus. Era capaz de matar a tua mãe.Meu Deus: Tenho catorze anos. Tenho sido sempre boa rapariga. Talvez possas fazer-me algum sinal que me faça perceber o que me está a acontecer. Na primavera passada, pouco depois de Lucious nascer, ouví-os brigar. Ele puxava lhe
por um braço e ela diz: É muito cedo, Afonso, inda não estou bem. Ele deixava-a em paz, mas na semana seguinte, volta a puxar-lhe pelo braço. E ela dizia: Não, não posso. Não vês que estou quase morta? E essas crianças todas. Ela tinha ido a Macon para ser vista pela irmã doutora e fiquei a tomar
conta dos miúdos. Ele não me disse nem uma palavra amável. Só: O que a tua mão não quer fazer, vais tu fazer. E encostou-me aquela coisa à anca e começou a mexe-la e agarrou-me a mama e metia-me a coisa por baixo e, quando eu gritei, esganou-me e disse: O melhor é calares o bico e começares a te acostumar. Mas nunca me acostumei. E agora fico indisposta cada vez que tenho que fazer comida.
A mãe anda ralada e passa a vida a olhar para mim, mas já está mais feliz porque
ele a deixa em paz. Mas está muito doente e parece que não dura muito.
Meu Deus: A mãe morreu. Morreu a gritar e a praguejar. Gritava comigo. Praguejava para mim. Estou prenha. Não posso mexer-me bem. Ainda não chego do paço e a água já esta quente. Ainda não preparo a bandeja e a comida já ficou fria. Ainda não arranjo os miúdos para irem para a escola e já são horas de
almoçar. Ele não dizia nada. Estava sentado à beira da cama. Pegava na mão dela e chorava e repetia: Não me deixes, não te vás embora. Quando foi do primeiro, ela perguntou: De quem é? Eu disse: De Deus. Não conheço mais nenhum homem e não sei que dizer. Quando comecei a ter dores de barriga e ela a mexer-se e saiu de lá aquele bebe que mordia a mão fiquei pasmada. Ninguém nos vinha ver. Ela estava pior e cada vez pior. Um dia perguntou-me: Onde está? Eu disse: Deus levou-o. Mas foi ele que o levou. Levou-o quando eu estava a dormir. E matou-o no bosque. E vai matar este agora se puder.
Meu Deus: Diz que está farto. Já não pode comigo. Diz que sou má e só aborreço.
Tirou-me o outro bebê. Era um menino. Mas parece-me a mim que não o matou. Acho que o vendeu a um casal de Monticello. Tenho o peito cheio de leite e sai sempre e estou encharcada. Ele pergunta: Porque não tens um ar mais decente? Veste qualquer coisa. Que quer ele que eu vista? Não tenho nada. Oxalá encontre
alguém para se casar. Olha muito para a minha irmã mais nova e ela tem medo. Mas eu digo: Eu tomo conta de ti. Se Deus me ajudar. Meu Deus: Tem trazido cá a casa uma rapariga de Gray. É mais ou menos da minha idade, mas casou-se com ela. Passa a vida em cima dela e a desgraçada anda de um lado para o outro como se não soubesse o que lhe acontece. O mais certo é ter pensado que gostava dele. Mas aqui nós somos tantos. E todos a precisar de qualquer coisa. À minha irmãzinha Nettie apareceu-lhe um pretendente que é quase como o nosso pai. Também é viúvo. A mulher morreu. Um amigo dela matou-a quando
ia a sair da igreja. Mas ele ficou só com três filhos. Viu Nettie a sair da igreja e agora todos os domingos ao cair da tarde temos cá o Sr. . Eu digo à Nettie que se agarre aos livros. Ela não sabe o que é ter que tratar de crianças que nem sequer são nossas. E olha o que aconteceu à nossa mãe. Meu Deus: Hoje bateu-me porque diz que pisquei o olho a um rapaz. Pode ser que me entrasse qualquer coisa, porque não pisquei o olho. Nem sequer olho para os homens. É verdade. Para as mulheres olho porque não tenho medo delas. És capaz de pensar que tenho raiva à minha mãe por me ter rogado pragas. Mas não. Eu tinha pena da
mãe. Foi por ela querer acreditar no que ele lhe contava que morreu. Ás vezes ainda olha para a Nettie, mas eu meto-me sempre à frente. Agora digo à minha irmã que se case com o Sr.Mas não lhe digo porquê. Digo-lhe: Casa-te Nettie e goza a vida pelo menos um ano. Depois eu sei que fica grávida. Mas eu, eu nunca
mais. Uma rapariga na igreja diz que para a gente ficar grávida é preciso ter regras. E eu já não tenho.
Meu Deus: Por fim o Sr. veio pedir a mão da Nettie. Mas ele não deixa ir. Diz que é muito nova e não tem saber. Que o Sr. tem filhos demais. E que, além disso, há a vergonha de matarem a mulher. E acerca de todos esses boatos sobre ele e a Shug Avery? Que se passa? Perguntei pela Shug Avery à nossa nova mãe.
Quem é? Diz que não sabe, mas vai saber. Fez mais que isso. Arranjou um retrato. É o meu primeiro de uma pessoa a sério. Diz que o Sr. tirou qualquer coisa da carteira para mostrar ao meu pai e que o retrato caiu no chão e debaixo da mesa. A Shug Avery é a mulher mais linda que eu já vi na minha vida. Mais linda que a mamã. E dez mil vezes mais que eu. Tem umas peles e a cara pintada e o cabelo brilhante. Sorri mostrando os dentes e está a subir para um automóvel. Mas tem uns olhos sérios. E um pouco tristes. Perguntei se podia ficar com o retrato e passei a noite a olhar para ele. E sonhei com a Shug Avery. Ela estava vestida mesmo a matar e dançava e ria.
Meu Deus: Disse-lhe que me possuísse a mim em vez da Nettie quando a nossa nova mãe adoeceu. Ele perguntou-me que estava eu a falar. Eu disse-lhe que podia arranjar-me. Fui ao meu quarto embrulhei-me num pano de estofo, pus umas plumas e calcei uns sapatos de saltos altos da nossa nova mãe. Ele bateu-me por me vestir como uma desavergonhada, mas tornou a fazê-lo. O Sr. apareceu à noite. Eu estava na cama a chorar. Afinal a Nettie viu como é e a nossa nova mãe também. E também chorava no quarto.

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